Se não viu como começa a história, veja a parte 1 e a parte 2.
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Apenas levando uma peça de pele, ela seguiu rastreando e
farejando os fugitivos do dia anterior. Em poucas horas ela encontrou sua
origem. Uma paliçada defendia uma pequena cidade, onde estavam vários homens a
postos. Entendeu então o motivo de não ter nenhuma força maior ido atrás dela.
Eles estavam com medo, fortificando a cidade. E com razão.
Ela aguardou. Quando o Sol se pôs, permaneceu imóvel perto
de algumas árvores e se cobriu. A noite já ia avançada, e ela decidiu que era
hora. Se levantou ainda coberta e se dirigiu à entrada principal da cidade, se
orientando pelo som e pelo olfato. A cerca de trinta metros do portão, ela
parou, percebendo que já a tinham visto.
Uma súbita agitação à frente a fez perceber que eles ainda
estavam em alerta e se prepararam para ela. Mas não importava, ela sabia que
não era o suficiente.
Calmamente retirou a capa de pele que cobria sua cabeça,
virando os olhos para o céu. A lua cheia brilhava majestosa.
Ao vislumbrar seu lindo brilho, seus olhos instantaneamente
assumiram um tom de amarelo escuro, quase dourado. Não foi um desconforto que
ela sentiu no seu interior, foi uma verdadeira torção nas entranhas. Uma
sensação agoniante, mas que não chegava a ser uma dor. Como se mãos invisíveis
sovassem sua carne como massa de pão. Assim sentiu seus ossos e músculos se
alongando, os ombros se tornarem mais largos, os pés crescendo até se tornar um
terceiro segmento de perna, sendo que o dedos dos pés se tornavam patas
enormes.
Olhou a pele dos braços enquanto ela escurecia com o
surgimento de milhares e milhares de novos folículos, que logo se tornaram pelos
que iam cobrindo toda sua pele. Viu-se aumentar de tamanho, rasgando pouco a
pouco as vestes. Enquanto o raciocínio ia se embaralhando, ela se abaixou para
apoiar uma das mãos no chão sem conseguir controlar os espasmos que a
transformação lhe causava.
Ela jamais antes nos rituais de soltura da fera tinha
prestado tanta atenção no momento em que transformava o corpo e entregava a
mente. Sempre que se transformava, era apenas por uma obrigação, um costume que
impedia que os instintos selvagens de sua consciência animal começassem a
atrapalhar seus pensamentos por ficar demasiado tempo presos. Nessas ocasiões,
ela caçava, nadava, corria pela floresta, fazia coisas que animais selvagens
livres faziam. Ali entretanto, ela se transformava com prazer, com um objetivo.
Ela desejava aquilo. Desejava que aquela cidade toda pagasse pelo assassinato:
ela desejava vingança. A fera sabia disso.
Sua última e vaga lembrança foi reparar em um focinho se
alongando onde antes era seu rosto. Tudo depois disso, foram fragmentos de
sonho: véus vermelhos, gritos distantes e o detestável sabor de sangue humano
na boca.
Sua consciência foi voltando aos poucos, e ela se viu
sentada sob uma árvore recostada ao tronco, com o Sol já totalmente nascido e
uma leve brisa fresca batendo em sua nudez. Seu belo corpo estava agora inchado
e desajeitado, além de estar sujo de barro e sangue seco e com um leve odor de
fezes. Não demorou a encontrar um grande rio que abastecia a cidade em um
trecho que se encontrava a pouco mais de um quilômetro de distância, então se
lavou. Enquanto estava na água, fios brancos se formavam dos seus seios, que
transbordavam de leite, o que só fazia-a se sentir mais amarga.
Passado menos de hora, depois de urinar algumas vezes,
sentiu seu corpo voltar ao normal. Não conseguia mais chorar, embora sentisse
como se tivesse uma bolota entalada em sua garganta. Sua mente agora funcionava
perfeitamente, então refletiu muito enquanto caminhava em direção à cidade. A
cada metro, o odor de morte aumentava.
O cenário lá era desolador. Soldados, camponeses armados ou
não, mulheres e até crianças: todos mortos. Alguns em estado muito pior do que
outros. Observou então seu corpo, percebendo que em alguns pontos havia marcas
escuras onde provavelmente o corpo da fera tivesse sido ferido durante o
ataque. Pela disposição dos corpos, pôde perceber que o pesadelo daquelas
pessoas não durara muito tempo devido à fúria implacável do ataque, embora não
tivessem sido pegos totalmente de surpresa. Talvez alguns tivessem escapado,
mas isso não importava agora.
A vingança fora consumada com uma brutalidade que agora ela
considerava excessiva e desnecessária, principalmente por pensar que muitas das
pessoas que ali estavam talvez nem soubessem do que acontecera com seu filho. O
pior entretanto, era sentir que nem um pouco do pesar que sentira tinha sido
compensado. Muito pelo contrário, agora além de tudo, se sentia culpada.
Em meio a esses pensamentos, se lembrou que não podia remoer
mais seus atos, pelo menos não ali: era hora de partir novamente e dessa vez
mais de forma mais urgente. Se lembrou também que ainda estava nua. Não
precisou procurar muito para encontrar peças de roupa que lhe servissem. Quando
pensava em uma direção por onde pudesse ir, farejou algo diferente. Seguiu na
sua direção até chegar às margens do rio onde viu uma mulher caída com o rosto
no chão. Tinha as costas abertas por garras e jazia gelada a cerca de um metro
da água, tendo o braço direito esticado e os dedos tocando em uma tampa feita
de material trançado, talvez de um cesto ou balaio. Foi então que identificou o
cheiro. Era leite: a mulher morta era lactante.
Olhou então para a tampa e para o rio, que ali onde passava
pela cidade era mais largo que onde se lavara, e também corria com mais vigor.
Um forte sentimento que ela não conseguiu identificar tomou
conta de seu ser, fazendo-a seguir imediatamente margem do rio abaixo. Andou
por um bom tempo até conseguir sentiu algo diferente no ar ao se aproximar de
uma grande colina. Observou atentamente ao redor tentando identificar a direção
de onde deveria estar vindo aquele tênue cheiro, quando ouviu o som de batidas
em uma árvore que ficava na beira do rio, muitos metros adiante. Chegando na
árvore, reparou curiosa em uma ave que batia insistentemente com o bico no
tronco, mas sua atenção se desviou ao notar que também se aproximara da origem
do cheiro que seu faro buscava. Atrás das raízes da árvore, estava preso um
cesto, perfeitamente compatível com a tampa vista com o cadáver mais cedo.
Ao se aproximar pelo outro lado, viu que dentro dele, jaziam
duas crianças desacordadas. A respiração estava muito fraca, e seus pequenos
rostos pareciam estar inchados de tanto chorar.
Seu coração disparou e ela imediatamente tomou-os em seus
braços. Assoprou em suas pequenas bocas, um seguido do outro, fazendo em
seguida movimentos circulares com os dedos em seus delicados tórax como o
ancião ensinara há muitos anos. Aos poucos eles foram recobrando os movimentos,
mas pareciam muito fracos até mesmo para chorar. Instintivamente, ela desnudou
os seios e levantou os dois simultaneamente para amamentá-los. De início, eles
tiveram dificuldade, mas depois de alguns instantes começaram a mamar
vigorosamente, quase tanto quanto seu falecido filho.
Zíe retirou-se dali levando consigo as crianças, caminhando
sem cessar até o anoitecer. Se escondeu do luar em uma caverna próxima a uma
enorme árvore com galhos espalhados lateralmente como se fosse abraçar aqueles
que sob ela ficassem. Quase nem dormiu durante a noite, assim como os bebês.
Quando a aurora chegou, ela se saiu da caverna iniciando nova marcha. Ela
pensava em chegar ao mar mas não conseguia pensar em o que faria então. Nesses
devaneios, percebeu o odor de alguém muito próximo, e percebeu um homem que
aparentava idade avançada olhando-a com uma expressão assustada.
Depois de observar as crianças em seus braços, sua expressão
ficou um pouco piedosa. Como ela não sentiu ameaça no semblante do
desconhecido, também alterou sua expressão dura tornando-a suplicante.
O homem observou por um momento, passando os olhos das
crianças para ela e dela para as crianças. Um instante que pareceu uma
eternidade depois, fez um sinal para que o seguisse. Alguns minutos depois
chegaram a um campo de criação de ovelhas com um casebre e um pequeno celeiro
ao sopé da colina. A moça foi ali acolhida pelo homem e por sua mulher também
de idade avançada. Ambos mostravam certa desconfiança nela, principalmente no
início, mas um grande afeto pelos gêmeos que continuavam a ser amamentados por
ela.
Com o passar das luas, eles se tornavam mais fortes,
saudáveis e alegres. Ela sabia que a raça mestiça poderia ser transmitida pelos
dentes ou pelo sangue, mas pelo que ela notava, isso não valia para o leite
pois os bebês se curavam e se cansavam como crianças puras, apesar de terem
força e vitalidade formidáveis, além de ter logo desenvolvido um gosto
prematuro por carne. A lua cheia também não os deixava alvoroçados como
acontecia com toda jovem criança dos mestiços.
No período em que ficou com o casal apareceram e se foram
pessoas pedindo todo tipo de informações, mas ela permanecia escondida nas
ocasiões sem ser denunciada pelo casal. Zíe pouco se comunicou com eles,
portanto foram poucas as palavras do idioma local que pôde aprender. Ela também
precisava sempre caçar para se alimentar, pois apesar de ser tratada pelos
anfitriões, o que saciava um puro era muito pouco para um mestiço. O período da
lua cheia não era problema, pois o celeiro onde dormia não possuía janelas. A
cada duas luas, ela atravessava o rio e caminhava muito, até chegar em uma
região onde parecia não haver moradias nem estradas por perto, para então
entrar em um grande bosque que mais parecia uma floresta, e ali soltar a sua
fera.
Quase um ano se passou quando em uma noite sem lua o homem
veio ter com ela. Enquanto ele falava pausadamente, ela pôde compreender que
ele queria dizer que sabia o que ela era. Depois de uma longa pausa, ele
balbuciou algumas coisas e ela somente entendeu "meu filho na
cidade". Então ela compreendeu que havia matado o filho daquele homem
durante a matança que fizera naquele povoado. Ela refletiu muito durante a
noite sobre o porquê de ter sido acolhida mesmo sob tais circunstâncias. Antes
de adormecer se sentiu novamente como um monstro terrível. Ela destruíra
dezenas de vidas inocentes por causa do crime de um homem, mas ali, recebera
exatamente a moeda contrária. Ela sabia que tudo fora feito por causa das
crianças que ela adotara, mas mesmo assim, a culpa e a gratidão a perfuravam
como duas lanças de metal-veneno.
Logo ao amanhecer, ela se dirigiu à presença dos dois com os
gêmeos no colo. Entregou um para o homem e outro para a mulher e disse a eles:
"Seus filhos". Tomou algumas vestes dadas anteriormente a ela e se
virou para ir embora, mas antes de começar a andar, se voltou e disse ainda da
melhor forma que conseguiu pronunciar: "Não conte a eles". O senhor
fez um breve aceno com a cabeça, enquanto a mulher permaneceu calada olhando
para o bebê em seu colo com ar emocionado. Assim Zíe partiu com poucos
pertences às costas, uma nova lança com ponta de osso na mão direita e com a
esquerda vazia. Pensar no braço esquerdo livre fez uma lágrima cair.
Pensou consigo que seu lar era o norte e não qualquer outro
lugar e para lá iria se dirigir. Não importa se iria fundar um novo clã, se
iria viver solitária nas florestas geladas ou se iria morrer no caminho até lá.
Não restava nela vontade para planos a longo prazo, apenas faria seu caminho e
tentaria se manter viva a cada dia. Se chegasse lá decidiria o que faria.
Assim ela seguiu sem mais olhar para trás.
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Vou fazer um desenho disso
ResponderExcluir-MATHIAS