Se não viu como começa a história, veja a Parte 1.
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Ela pensou em se desfazer dos corpos, mas do mesmo jeito que esses tinham ali chegado outros poderiam chegar. Muitas coisas se passaram por sua cabeça. Talvez fossem apenas três malfeitores que encontraram ali um abrigo temporário, mas talvez fossem sentinelas de algum exército que expulsara os moradores daquele vilarejo.
A idéia a fez tremer. Matar três bandoleiros era fácil, mas um exército era diferente. Ela sequer era treinada como uma guerreira, e os mestiços, apesar de poderosos não eram invencíveis, como se provara no dia em que fugira. Ela tinha plena consciência disso.
Os pensamentos se misturavam em sua mente, perigo, fome, exércitos. Ela sentia que aos poucos ficava mais confusa. Sem tempo para mais devaneios, se apressou em ir embora, tomando o filho, a bagagem e a lança esquecida até então. Lá fora, reparou na caça dos homens que ficara abandonada a alguns metros da casa, e sem demora, atou a lança às costas, levantou o animal morto e prosseguiu.
Perto do meio dia, se sentiu segura para parar e finalmente se alimentar. Enquanto comia, seus pensamentos ficaram um tanto quanto menos conturbados e começou a fazer planos. Talvez pudesse se misturar em alguma aldeia, se manter em segurança ao menos até o filho começar a crescer e se fortalecer. Talvez fosse mais fácil se os puros não temessem e odiassem tanto os mestiços. Mas por enquanto o que importava era se afastar o mais rápido que pudesse, pois apesar da sensação de tensão ter passado, um instinto de alerta se acendia dentro dela. Era necessário fugir mais depressa.
Não se atreveu a acender fogueira, portanto teve de consumir o animal cru. Depois de comer as vísceras que lhe agradavam e uma boa porção de carne e gordura, amamentou novamente a criança e seguiu viagem levando as partes da carcaça que julgava que ainda poderiam ser aproveitadas algumas horas mais tarde.
Ao cair da noite, apesar da carne não estar mais em estado muito agradável ela comeu, uma vez que os mestiços não precisavam temer enfermidades ou infecções. Ficou acalmando a criança sentada sob algumas árvores até que o bebê adormeceu. Dirigiu-se a um riacho que ficava a alguns metros dali e enquanto recolhia água, observou a lua que já estava em avançado período crescente. Um súbito desconforto nas entranhas a alertou que o período de contenção estava mais uma vez prestes a começar.
Voltou para perto de seu filho e ficou com ele por horas até adormecer no meio da madrugada.
Dois dias e duas noites se passaram sem grandes problemas, a não ser o de encontrar comida. Ao amanhecer do terceiro dia, ela sentiu um desconforto ao abandonar as ruínas onde se refugiara durante a noite. A sensação de alerta só crescera nos dias que se seguiram, mas naquele momento estava deveras alarmante. Preparava-se para ir embora quando sentiu o odor de homens e de cavalos e poucos instantes após sentir o cheiro de cães, ouviu ao longe seus latidos frenéticos. Eram rastreadores.
Ela pegou tudo o que tinha e correu para um bosque próximo. Não conseguiu porém, se embrenhar nas árvores antes que homens e animais surgissem por detrás de uma colina e a avistassem. Pelo som e pelo cheiro, ela percebeu que parte da força se deslocou para o lado e outra veio diretamente em sua direção. Ela parou em uma espécie de clareira onde sentiu ser o centro do bosque e ali ficou, sabendo que não teria como fugir.
Os homens a seguiram a pé, pois os cavalos não entraram por entre as árvores, e quando o primeiro deles irrompeu em um ataque, a lança dançou, abrindo a garganta dele com a afiada ponta de osso. Do lado contrário de onde o homem viera, ela pousou o filho no chão e continuou a luta com mais deles que agora chegavam. Ela girou, e o homem mais próximo teve o rosto quebrado com a parte contrária da lança, e ao fim do giro, o próximo tinha a ponta fincada no centro do peito.
Outro a atacou com uma espada curta rústica, sendo derrubado por uma rasteira e morto em seguida pela lança da moça. Apesar de nunca ter se aprofundado nas artes da luta, ela manejava sua arma com certa maestria, derrubando todos os inimigos que se aproximavam. Sem contar quantos tinham sido, ela se lembrou do bebê. Ele chorava.
Ao se virar, vários homens tinham vindo pelo outro lado. Um deles que parecia ser o líder tinha seu filho nos braços. Quando ela fez menção de atacá-lo, ele levantou uma faca e apontou para a criança. A mulher largou a lança e caiu de joelhos às lágrimas em seu desespero, e dois homens a seguraram um de cada lado.
Ela tentou implorar, mas só conseguia soluçar. Aquilo era demais: primeiro sua aldeia onde pereceram marido, pai, mãe, irmão, tutor e amigos, e agora seu filho com tão pouco tempo de vida sendo ameaçado daquela forma covarde.
O homem pareceu se divertir com a situação. Malditos os homens puros que eram sádicos e cruéis. Ela não conseguia pensar, só queria que aquele momento acabasse.
O homem falou qualquer coisa em sua língua, em tom de sentença, e olhando para Zíe com desprezo cravou o punhal em seu filho.
Seu filho.
O grito de Zíe ecoou de forma tão terrível, que algum desavisado a quilômetros dali poderia ter confundido com o clamor do fantasma de uma mulher que era torturado em algum tipo de inferno. Apesar do sol já ter nascido, seus olhos se tornaram amarelos, garras se formaram onde um instante antes estavam suas unhas e seus dentes caninos se tornaram presas ameaçadoras.
O homem soltou o corpinho inerte da criança quando ela saltou sobre ele com um rosnado que mais parecia um rugido. Os homens que a seguravam de joelhos, nada puderam fazer para impedir, e caíram pesadamente quando ela saltou. Sem tempo de reagir ao inesperado ataque, o algoz do seu filho sentiu suas garras entrarem em seus flancos através da camisa de couro que usava, e suas presas se enterrando através de suas clavículas.
Ela dilacerou o ombro e o pescoço do homem a mordidas, ficando coberta com o sangue que jorrava. Quando viu que este estava morto, se voltou para os outros que se afastavam assustados e os atacou também. Não era mais uma luta de habilidades, era um animal feroz que abria brutalmente todos aqueles de quem conseguisse se aproximar. Um homem se aproximou por trás enquanto ela rasgava o peito de um deles no chão e feriu sua panturrilha. Ela se voltou para ele mas antes de saltar, um outro furou seu ventre. Um terceiro laçou seu pescoço com uma corda e puxou de forma que seu rosto se aproximasse do chão.
Em seu frenesi, ela colocou as duas mãos no chão e deu um impulso para se levantar, derrubando o homem da corda. O que a ferira inicialmente já estava a ponto de apunhalá-la, mas com um único golpe de suas garras, ela abriu sua barriga.
O outro tentou fugir, mas foi apanhado e morto antes do segundo passo. O que a havia laçado, estava quase de pé quando foi agarrado, então ela o virou de costas, e o degolou com as garras, enquanto seu olhar animalesco fitava o nada.
Ouviu então o som de cavalos. Eles estavam batendo em retirada, levando suas malditas montarias e farejadores. Ela se lançou em perseguição e em um instante estava fora do bosque, avistando alguns cavalos que avançavam a galope não a grande distância. Ela saiu em seu encalce, correndo tão veloz, que precisava se curvar à frente para manter o equilíbrio.
Rapidamente alcançou o cavalo mais atrasado, e saltou sobre ele, derrubando-o de lado. O cavaleiro rolou à distância, enquanto ela cortava a garganta do cavalo em plena queda.
Ela caiu com os pés e uma das mãos apoiadas no chão. O homem ferido ao avistá-la, esqueceu da dor da queda e foi tomado por um terror indescritível. Ela saltou sobre ele que tentava fugir se arrastando, e os dois rolaram no chão. Quando pararam de rolar, ela se levantou e o deixou inerte, três vezes mais rasgado do que quando caíra do cavalo.
Seu olhar era furioso quando ouviu ao longe os cavaleiros se afastando, em algum ponto que já nem era mais possível de se avistar.
Primeiro ela soltou um feroz rugido de animal selvagem, depois caiu de joelhos e chorou. Chorou longa e vigorosamente. Já não tinha mais olhos amarelos, garras ou presas, era apenas uma garota, bela, triste e coberta de sangue.
Sem perceber quanto tempo ali ficara, ela tentou se levantar, e só então sentiu os ferimentos, que doíam impiedosamente. Ela sangrara muito, além dos ferimentos serem profundos. Agora mais calma, ela se levantou ignorando a dor e se dirigiu ao cavalo que matara a poucos metros de onde estava. Devorou tanto quanto pôde e voltou para o bosque. Tudo estava onde fora deixado, inclusive o filho que tivera oportunidade de amar por tão pouco tempo.
Atravessou as árvores, embalou seu querido filho em algumas peles e o enterrou do outro lado, onde nenhum sangue fora derramado. Com o tempo que restou antes do anoitecer, ela se dirigiu a um riacho, se lavou e subiu uma parte dele a fim de não ser seguida caso eles voltassem. Os planos que se formavam em sua mente, exigiam que ela estivesse completamente curada quando os visse novamente. Após encontrar uma formação rochosa, ela se escondeu e se cobriu com a única pele que não deixara na pequena sepultura de seu filho.
Ali, entre cochilos e pesadelos esperou chegar a noite e depois a alvorada. Durante o dia, tratou de se cuidar. Os ferimentos já estavam quase fechados ao amanhecer, então ela caçou, comeu, bebeu e tornou a comer. Pouco depois do meio dia, mal restavam sinais em seu corpo de que algum ferimento pudesse ter existido algum dia.
Agora era hora de seguir adiante.
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