segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Poder Selvagem: A Fúria Materna (Parte 1)


O amanhecer daquele dia, já trouxe um desafio a Zíe: uma grande dificuldade que ela sentiu ao abrir os olhos e abandonar os belos sonhos em que estava imersa, trazendo-lhe o pressentimento de que o dia seria difícil.

Um rápido olhar ao redor e outro ao lado para constatar que tudo estava em ordem e que seu bebê dormia tranquilamente. Não foi animador observar a gruta em que dormira precariamente aconchegada nas peles que trazia consigo, se lembrando do belo banquete de seu sonho onde puros e mestiços confraternizavam alegremente. Mas tempo para sonhos terminara onde se iniciava mais um dia de sobrevivência.

Sem demora se levantou, o que fez a criança também acordar. Enquanto amamentava, ficou pensando nos momentos derradeiros de quando sua aldeia fora destruída.

Por milênios os mestiços viveram ali. Nunca se proliferaram muito e nunca expandiram o território, pois a tradição contada pelos anciãos geração a geração ensinava que a maldade que existia no mundo não poderia corromper a sua raça, pois se assim fosse, essa mesma maldade cobriria todos os povos. Assim, eles viveram isoladamente nas florestas geladas ao norte.

Nunca fizeram mal a nenhum outro povo. Só se contavam histórias de duas ocasiões onde o membro de algum clã ou povoado puro desaparecera nas terras destinadas aos rituais de soltura da fera. Muito também era contado entre estes sobre o avistamento de criaturas para os quais eles davam qualquer nome, ou mesmo de carcaças de animais completamente destruídas.

Na geração de Zíe, eram muito poucos os remanescentes mestiços, totalizando treze pessoas divididas em três famílias. Nenhum deles soube como tantos assaltantes surgiram simultaneamente. Talvez tenha sido uma união de vários povos, mas isso não importava. O cheiro dos atacantes os precedeu, mas como nunca em sua história os mestiços tinham sido atacados ali, nenhuma grande defesa pôde ser preparada. De início eles se defenderam sem problemas, dos mais velhos aos mais jovens da aldeia. Uma montanha de corpos se formou antes que o primeiro mestiço caísse, o que só ocorreu, quando três hordas ainda maiores os atacaram de direções diferentes.

O ancião que ainda lutava mesmo transpassado por três lanças ordenou a Zíe que fugisse com seu filho e a garota obedeceu sem questionar, embora suas lágrimas jorrassem dos olhos.

Quatro luas tinham se passado desde então, sem que ela parasse de vagar, a maior parte do tempo para o sul ou para o leste.

Na saída da gruta, sentiu o vento fresco bater em seu rosto, que apesar de sujo, da expressão dura e dos cabelos desgrenhados, continuava belo. Com o bebê no braço esquerdo, uma lança com ponta de osso na mão direita e sua escassa bagagem às costas, iniciou a caminhada do novo dia.

Agora que caminhava, sentia o estômago roncar, entretanto não sentia o cheiro de caça em direção alguma. O sol já estava alto quando sentiu algo diferente no ar mais adiante. Com toda cautela possível, avançou até divisar ao longe o que parecia um pequeno vilarejo com uma dúzia de casas rústicas.

Normalmente ela se afastaria, mas algo estava diferente: não sentia nem ouvia pessoas alguma naquele local. Um forte impulso tomou conta de Zíe, uma mistura de curiosidade, com impetuosidade e com a fome que crescia. Ela precisava checar, talvez encontraria algo ali. Antes porém que iniciasse a aproximação, um momento de razão a fez refletir melhor. O que estava fazendo? Para que todo o cuidado que tivera até então se iria simplesmente se entregar ao perigo gratuitamente? Ela entendeu que a razão começava a lhe faltar; já não praticara o ritual de soltura por muito tempo.

Antes que começasse a se afastar, sentiu um agradável odor na direção que desistira de seguir, talvez fosse um javali ferido dentro do vilarejo fantasma. O estômago roncou, e os sentimentos imprudentes voltaram todos, com ainda mais força.

Sem que se desse por si, já estava entre as edificações. Não sentia mais o odor de antes, talvez tivesse sido uma breve rajada de vento favorável, talvez tivesse sido uma alucinação. Ela já se sentia frustrada quando percebeu um movimento atrás de uma casa, fazendo seu coração pular. O bebê sentiu sua explosão de adrenalina, pois também se agitou. Em um instante, ela se atirou para dentro de uma casa maior que se encontrava perto de onde estava e que por sorte não tinha a porta bloqueada.

Em instantes sentiu novamente o cheiro de sangue de javali, mas não sozinho. Tinha também cheiro de homens. Como pudera ser tão estúpida? Como ignorara tão debilmente seus instintos, que em nenhum momento pararam de alertá-la?

Pelas vozes notou que eram três, provavelmente trazendo o resultado de uma caçada. Ela não compreendia a língua em que eles falavam, mas notou claramente a tensão no ar quando de súbito eles pararam de falar parando perto da casa onde ela entrara. A porta ficara aberta.

O bebê inquieto em seus braços à beira do choro também não ajudava. Quando viu as sombras preencherem a porta, não tentou se esconder, apenas jogou algumas peles no chão e colocou o bebê carinhosamente sobre elas. Sequer se lembrou da lança que ficara encostada perto do bebê.

Quando se levantou, os três desconhecidos já estavam à porta, olhando perplexos para ela. O olhar de perplexidade não durou muitos instantes. Só pela expressão que tomou conta de seus rostos barbudos ela já sabia muito bem o que eles iriam fazer, mesmo que não tivesse sentido o odor de cio masculino que eles passaram a exalar ao observá-la.

O maior deles começou a sorrir com deboche e fez um comentário qualquer com os companheiros que também começaram a sorrir. Em seguida avançou calmamente na direção dela sem sequer dar atenção para a criança no chão. Ela se manteve firme no local com um olhar inexpressivo.

Ele pegou seu braço e puxou, falando algo que soava como uma ordem. Ela não se moveu.

Ele lançou um súbito olhar de fúria e puxou com muito mais força. Ao ver que o braço dela sequer tinha se movido, como se fosse uma estátua, o homem pareceu ao mesmo tempo assustado e confuso. Como aquela camponesa miúda poderia ser tão forte?

Mas ela era forte, e também rápida. Sem que ele se desse conta, uma fração de segundo depois era ela quem segurava seu antebraço. Ele teve tempo de arregalar os olhos de terror antes que a dor tomasse conta de seu rosto. Com um pequeno movimento, ela partiu o antebraço dele, resultando em uma terrível fratura exposta. Em seguida, soltou o braço quebrado e segurou sua cabeça, empurrando o homem para o lado e para baixo apenas com a força do braço. Ela acertou a sua têmpora no canto de um móvel que estava ao lado, podia ser um baú, uma mesa, ou qualquer coisa, para ela não importava. O homem desfaleceu com a lateral de sua cabeça esmagada.

Tudo isso aconteceu muito rápido, de forma que os outros dois tomados de assombro não tivessem tomado nenhuma ação até então. Um deles então trocou a perplexidade por fúria e avançou sobre ela sacando um machado pequeno, seguido do outro com uma adaga. O primeiro golpe veio ligeiro, mas ela foi ainda mais. Esquivou-se do machado e deu um encontrão no atacante atirando-o contra a parede, se voltando para o segundo que já tinha o golpe de adaga pronto. Com um rápido movimento reto, Zíe acertou a o pulso com a mão aberta contra o rosto do homem que foi jogado para trás com o nariz e os dentes da frente quebrados. Então se lançou à frente agarrando o pescoço do homem em pleno ar e o puxou de volta acertando o joelho em sua barriga.

Finalizou-o esmagando seu pescoço com um breve e poderoso apertão, jogando-o para o lado em seguida. Um breve relance ao bebê que chorava no mesmo lugar onde fora colocado, e ela se voltou para o terceiro que já se levantara, mas não com menção de novo ataque, e sim de fuga. Sem demora, ele se lançou porta afora com ela no seu encalço.

Ao invés de segui-lo, ela parou abruptamente ao perceber um amontoado de pedras arredondadas que estava perto da porta por algum motivo qualquer. Rapidamente se abaixou e pegou uma pouco menor que um crânio humano e antes que o fugitivo desaparecesse por entre as casas, ela atirou a pedra. Um baque surdo se fez ouvir quando o projétil acertou em cheio a cabeça do homem que caiu e ali ficou.

Quando o odor do seu sangue chegou a Zíe ela deixou se esvair parte da fúria. Agora estava exposta. Não tanto quanto se um deles tivesse sobrevivido, mas aquelas mortes poderiam atrair atenção que ela não desejava. Desde que fugira não fazia idéia de onde estaria indo, mas ao menos não atraíra atenção.

Até agora.






Continua...



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