Começou durante a minha puberdade, com 12 anos mais precisamente.
Em uma noite de outono, não lembro a data exata, acordei no início da madrugada com uma gritaria na vizinhança. Normalmente essas coisas não me incomodavam, mas naquele noite os vizinhos estavam jogando truco mais vigorosamente do que qualquer vez que eu já tivesse presenciado. Aparentemente a festa estava animada.
Contei carneiros, cantei mentalmente, rezei, me virei na cama e depois de não sei quanto tempo consegui pegar no sono novamente. Nem sequer reparei se os gritos e sons da festa tinham cessado ou se o cansaço finalmente tinha me dominado. Certo tempo depois acabei acordando de novo com barulhos, mas desta vez não eram gritos e sim uma voz que falava dentro do próprio quarto. Eu estava confuso devido ao sono, e assim por alguns momentos só fiquei ouvindo aquela voz da qual eu não entendia uma só palavra, sem pensar em mais nada. O susto veio quando o raciocínio voltou ao normal.
Não era a voz nem do meu pai e nem da minha mãe portanto só podia ser um invasor no quarto. Olhei para a direção de onde o mesmo vinha e reparei em uma forma escura, meio transparente no canto do quarto, como se fosse um homem translúcido agaixado no canto do quarto, de costas para a minha cama e falando consigo mesmo. O pavor tomou conta de mim de modo que fiquei paralisado; não conseguia gritar pelos meus pais no quarto ao lado, nem sair correndo dali. Quando imaginaria que veria uma assombração no meu próprio quarto? Devo ter desmaiado em seguida pois não lembro o que se seguiu a isso. Na manhã seguinte assumi que tivera um pesadelo e segui com minha rotina.
Acontece que a partir daí, comecei a ter sonhos e pesadelos similares com certa frequência. Não eram como nos sonhos comuns, onde nós vemos imagens desconexas, situações absurdas e mudanças repentinas. Nessas ocasiões era muito real, chegando uma vez ou outra a tomar consciência de que estava sonhando.
Algumas vezes acontecia de forma mais simples, eu me via caminhando pela casa, pela rua ou ainda por lugares desconhecidos, de vez em quando alguém falava comigo, mas muito raramente eu me lembrava de uma ou duas palavras. Mas também tinham ocasiões desagradáveis. Eu muitas vezes vi um homem no quarto dos meus pais, ele era muito feio, embora hoje eu não consiga me lembrar de sua exata fisionomia, eu sei que me assustava. Ele não gostava de mim, pois me lembro de sempre me olhar com uma expressão zangada e uma vez até ter corrido atrás de mim.
Não raramente eu acordava paralisado na cama. No início isso me causava muito pavor, mas com o tempo me acostumei com a situação. Outra coisa que me deixou muito assustado, foi um sonho onde a casa em que eu morava estava completamente revirada, como se tivesse sido saqueada, e muitas pessoas estavam no quintal fazendo barulho.
Um dos piores foi quando eu me vi numa estrada escura, e quando tentei correr dali, encontrei com um homem deformado, com uma corcunda enorme, como se fosse um tumor saindo de sua pele pelas costas e se projetando para a esquerda. Ele me perseguiu e tudo o que eu desejei naquele momento foi que aquilo acabasse e que eu acordasse na minha cama. Felizmente foi o que aconteceu, e eu me vi deitado, ofegante e suando frio. Nesta noite não pude mais dormir.
Isso me fez finalmente contar para minha mãe o que eu vinha passando, fazendo ela pensar imediatamente que eu estava enlouquecendo; já meu pai nem deu muita atenção. Minha avó que veio a saber pouco depois já cogitou que eu estivesse sendo influenciado pelo diabo. Felizmente não fui submetido a nenhum ritual de purificação ou de exorcismo, pois apesar de minha família ir ocasionalmente à igreja católica, eles não eram muito religiosos. Ao invés disso, fui levado a um psicólogo que depois de ouvir tudo o que eu lembrei e me dispus a contar, concluiu que por eu ser filho único, eu era solitário fantasiava as coisas para chamar atenção. Pelo menos não me foi receitado nenhum remédio.
Para sanar isso, meus pais começaram a me envolver em todo tipo de atividades. Aprendi a tocar violão, a jogar futsal, a nadar, entre outras coisas. Fiz alguns amigos nessa época também. Mas os "sonhos" continuaram, sem que eu contasse para mais ninguém. Minha mãe se deu por satisfeita por eu não tocar mais no assunto e a vida seguiu.
Com o tempo as experiências comaçaram a rarear, até que dois anos depois elas cessaram. Me lembro que a última que tive nessa época foi tão vaga que quase confundi com um sonho. Alguma coisa que guardei dentro de mim me dá a certeza que não foi, mas mesmo assim não resta quase nada na memoria.
Eu estava deitado, quando senti que estava sendo chamado. Me senti subindo, como se minha cama estivesse em um elevador, mas eu nada conseguia enchergar. Em seguida eu lembro de estar no quintal de casa, mas não estava escuro, era como se tivesse um holoforte apontado direto para aquela parte onde eu estava. E eu ria, mas ria muito, me sentia muito feliz, realizado, em paz. Foi tudo o que consegui me recordar..
O que se seguiu a isso foi uma vida normal de adolescente. Aos poucos esses sonhos diferentes foram deixando de fazer falta e com o passar dos anos, quase esquecidos. Veio o fim do colegial, seguido da faculdade, os primeiros anos de emprego e depois outro emprego.
Eu já estava bem estabelecido, há meia década entrara na casa dos vinte anos e estava morando sosinho, pagando minhas próprias contas. Uma noite eu acordei depois de sonhar qualquer coisa boba que já não lembro. Estava de lado, e me virei de barriga para cima para fitar o teto; eu sentia o sono mas por outro lado não queria dormir, sem saber no entanto o motivo. Quando fui tentar virar para o outro lado percebi que não conseguia me mover, nem sequer um dedo do pé. Foi automático, a primeira coisa que eu me lembrei foi daquilo que vira há anos, o ser escuro e transparente que estava abaixado no canto do quarto. Sentindo que meu pescoço estava paralisado, de alguma forma consegui olhar de lado. Hoje quando me lembro não consigo entender ao certo qual foi a sensação pois ao mesmo tempo que eu estava com a cabeça paralizada na direção do teto, eu conseguia olhar de lado como se tivesse dois pescoços e duas cabeças sobrepostos. Desta vez o quarto estava vazio, não tinha nenhum ser ali.
Fiquei muito agitado por estar naquela situação. Depois de tanto tempo porque voltaria a ter sonhos reais como antes? Eu não queria, não podia. Eu então era um adulto, não tinha mais cabeça para tais fantasias. No entando estava eu ali paralisado como ficava na adolescência. Passados alguns momentos, os movimentos voltaram repentinamente, e me sentei na cama de um salto. Me levantei para beber água e em seguida voltei a me deitar, sem conseguir adormecer por mais de uma hora.
Nos primeiros dias após o ocorrido fiquei pensativo com essa situação: "será que estou entrando novamente naquele ciclo?". Minha vida estava completa, eu estava crescendo no meu emprego, estava finalmente conhecendo uma garota legal com quem pudesse ter um relacionamento; eu não entendia o porquê disso. Passaram-se semanas e eu comecei a esquecer novamente do caso, até que um dia adormeci sentado enquanto lia um livro. Eu acordei em dado momento, mas o sono era tanto que eu simplesmente nem abri os olhos, só fiquei ali no conforto da poltrona. Depois de alguns instantes, comecei a tombar para o lado e pensei que fosse me estatelar no chão. Não consegui me mover para impedir a queda, simplesmente caí e então a surpresa: eu cheguei ao chão leve como uma pluma.
Tentei me levantar, mas os membros estavam duros e pesados sendo que com muita dificuldade eu consegui levar os braços para frente tentando me arrastar. Além disso, eu estava ainda de olhos fechados, sem conseguir abrí-los apesar do esforço. Me arrastei alguns metros sem entender o que acontecia: eu me sentia leve, mas ao mesmo tempo sentia o corpo endurecido, como se meus braços e pernas pesassem uma tonelada. Depois de algumas tentativas a mais de me mover, ao colocar a mão no chão, eu subi pelo ar, como se fosse uma bexiga cheia de gás hélio e ali fiquei à deriva. Não enchergava onde estava e pelo espaço em que eu senti me deslocando, não parecia que estava na minha sala, foi quando tentei desesperadamente abrir meus olhos, fazendo toda força que poderia fazer nas pálpebras, e assim eles se abriram.
Eu me vi sentado na poltrona com o livro entreaberto no colo. Fora mais um daqueles sonhos. Mas que tipo de "sonhos" eram esses? Eu não sentia necessidade de chamar atenção de ninguem. Será que eu realmente estava enlouquecendo? Decidi então ignorar isso, certo de que iria parar e mais rápido do que antes..
Mas não parou.
Eu tinha a impressão de que a coisa voltara com mais força, pois bastava um cochilo qualquer que eu já sentia o corpo paralisado. E não só isso, agora eu também sentia algo muito forte, uma espécie de formigamento, um choque elétrico que percorria meus ossos e se expandia até a pele. O susto maior foi alguns dias atrás: algumas horas antes do despertador tocar, eu senti uma sensação parecida com aquela que senti na poltrona. Após uma rápida ida ao banheiro eu adormeci rapidamente, mas logo senti uma sensação de como se estivesse rolando da cama. Nem cheguei a cair no chão, eu simplesmente subi pelo ar, mas desta vez eu estava enchergando tudo na penumbra, e quando olhei para trás eu me vi deitado na cama, de barriga para cima, com a cabeça semi-virada para a esquerda e com o braço direito sobre o peito. O susto foi muito forte.
No mesmo instante abri os olhos. Apesar de não estar paralisado, fiquei imóvel por uns momentos devido ao susto. "Não é todo dia que você sonha que morreu" eu pensei. Mas então reparei que meu braço direito estava sobre o peito, tal como eu vira anteriormente. Nessa noite não consegui mais dormir. Não eram sonhos, alguma coisa realmente estava acontecendo. Eu precisava pedir ajuda, mas não sabia como, não sabia para quem, estava perdido; totalmente perdido.
Fiquei dias sem ter coragem de falar com alguém. Nesse espaço de tempo tive algumas experiencias parecidas com a em que me vi deitado.
Há alguns minutos tive uma outra experiência, talvez a mais forte de todas. Eu tinha deitado há pouco tempo quando me veio à cabeça a idéia de rezar. Isso já acontecera antes, mas eu nunca dei muita atenção ao lado religioso da vida. Neste dia eu tentei. Eu não sabia se rezava para o anjo da guarda, se para esse ou aquele santo, se para Jesus, ou para quem. Então me veio outra idéia, de que eu não precisaria rezar para ninguém específico, bastaria pensar em amor. Que tipo de amor? Sinceramente não sei, eu me lembro que foi isso que pensei na hora. Enquanto eu meditava sobre o "amor", pensei em muitas coisas, pessoas que conhecia, que não conhecia, animais, florestas, campos, mares, e assim adormeci.
Sonhei que estava sentado na varanda de casa olhando para a rua vazia, mas logo em seguida me vi deitado novamente na cama. Não tentei me mover para ver se estava paralizado, só fiquei ali. Ouvi um som de vento bem fraco, ao longe. Percebi depois de alguns instantes que esse som aumentava gradativamente até se tornar bastante audível. Por fim, quando o som chegou até mim, senti algo atingindo minha cabeça. Não senti dor, mas no impacto, o que pensei ser meu corpo fez um movimento como se tivesse quicado da cama e foi subindo vagarosamente. Eu não me sentia ameaçado, estava muito em paz, portanto me deixei levar.
Quando dei por mim, estava de pé na calçada, em frente de casa. Não sei explicar, mas eu me sentia muito inteligente naquele momento, como se eu entendesse tudo o que eu não entendo hoje. Não posso dizer o que eu entendia que não entendo mais, pois simplesmente não me lembro. É mesmo confuso de se explicar, pois é totalmente confuso para mim até mesmo de se pensar no assunto.
Mas a parte que eu me lembro perfeitamente é de ter visto um garotinho que aparentava ter uns sete ou oito anos brincando de se pendurar no portão como qualquer outra criança. Também me lembro perfeitamente do que ele disse depois de alguns momentos, quando ele percebeu que eu o olhava:
- Você demorou. Por acaso tem o costume de lavar os ouvidos?
- Os ouvidos? - Eu não entendi logo o que ele quisera dizer.
- Eu canso de te chamar e você só dorme. - Ficou rindo por uns instantes, então continuou: - Você já percebeu há muito que o que vem lhe acontecendo não são sonhos não é verdade? Então por que ainda não procurou ajuda, por que ainda não descobriu o que é tudo isso?
Então finalmente eu consegui falar:
- Realmente eu concluí que não eram sonhos, mas então por favor me explique o que é tudo isso?
Ele sorriu cordialmente. Apesar de ser um garotinho igual os que vemos todos os dias na rua, seu semblante era tão sábio que era como se eu estivesse falando com um ancião. Um instante depois respondeu:
- Acha que vou te privar da melhor parte? Não. Seu caminho está só começando. Você tem muito o que aprender, tem inteligência e recursos suficientes para isso. Eu te conheço muito bem para ter certeza disso.
- Mas... - O olhar que ele lançou em seguida me fez entender que não era ali que eu iria obter respostas, e sim buscando por mim mesmo, por isso eu não deveria terminar a pergunta que começara. Não sei como ele conseguiu transmitir tudo isso apenas com o olhar amistoso que fez, mas de alguma forma conseguiu. Em seguida ele continuou:
- Nossa conversa fica por aqui, pois você tem muito o que fazer, certo?
Não resisti e perguntei:
- Voltarei a ver você?
Imediatamente ele respondeu:
- Mas é claro! No entando você deve entender que por um bom tempo isso provavelmente não voltará a acontecer.
Assenti com a cabeça compreendendo que ele falava sério. Por fim ele se aproximou e disse:
- Então está na sua hora. muita paz e muita luz para você. - A última coisa que me lembro foi o leve tapa brincalhão que ele me deu no ombro.
Depois disso acordei na cama com uma sensação fortíssima de paz e com uma idéia na cabeça: registrar tudo o que vivi até agora.
O diálogo acima foi a forma mais fiel com que consegui transcrever o que conversei com aquele garotinho tão sábio e, que agora com toda certeza sei que não foi um sonho, assim como todas as experiências anteriores.
Este texto é o registro do primeiro passo de muitos que darei para entender o que acontece comigo e por quê acontece.
Muito obrigado a você que leu minha história. Te desejo sempre muita paz e muita luz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário