domingo, 27 de janeiro de 2013

Poder Selvagem: A Fúria Materna (Parte 2)


Se não viu como começa a história, veja a Parte 1.

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Ela pensou em se desfazer dos corpos, mas do mesmo jeito que esses tinham ali chegado outros poderiam chegar. Muitas coisas se passaram por sua cabeça. Talvez fossem apenas três malfeitores que encontraram ali um abrigo temporário, mas talvez fossem sentinelas de algum exército que expulsara os moradores daquele vilarejo.

A idéia a fez tremer. Matar três bandoleiros era fácil, mas um exército era diferente. Ela sequer era treinada como uma guerreira, e os mestiços, apesar de poderosos não eram invencíveis, como se provara no dia em que fugira. Ela tinha plena consciência disso.

Os pensamentos se misturavam em sua mente, perigo, fome, exércitos. Ela sentia que aos poucos ficava mais confusa. Sem tempo para mais devaneios, se apressou em ir embora, tomando o filho, a bagagem e a lança esquecida até então. Lá fora, reparou na caça dos homens que ficara abandonada a alguns metros da casa, e sem demora, atou a lança às costas, levantou o animal morto e prosseguiu.

Perto do meio dia, se sentiu segura para parar e finalmente se alimentar. Enquanto comia, seus pensamentos ficaram um tanto quanto menos conturbados e começou a fazer planos. Talvez pudesse se misturar em alguma aldeia, se manter em segurança ao menos até o filho começar a crescer e se fortalecer. Talvez fosse mais fácil se os puros não temessem e odiassem tanto os mestiços. Mas por enquanto o que importava era se afastar o mais rápido que pudesse, pois apesar da sensação de tensão ter passado, um instinto de alerta se acendia dentro dela. Era necessário fugir mais depressa.

Não se atreveu a acender fogueira, portanto teve de consumir o animal cru. Depois de comer as vísceras que lhe agradavam e uma boa porção de carne e gordura, amamentou novamente a criança e seguiu viagem levando as partes da carcaça que julgava que ainda poderiam ser aproveitadas algumas horas mais tarde.

Ao cair da noite, apesar da carne não estar mais em estado muito agradável ela comeu, uma vez que os mestiços não precisavam temer enfermidades ou infecções. Ficou acalmando a criança sentada sob algumas árvores até que o bebê adormeceu. Dirigiu-se a um riacho que ficava a alguns metros dali e enquanto recolhia água, observou a lua que já estava em avançado período crescente. Um súbito desconforto nas entranhas a alertou que o período de contenção estava mais uma vez prestes a começar.

Voltou para perto de seu filho e ficou com ele por horas até adormecer no meio da madrugada.

Dois dias e duas noites se passaram sem grandes problemas, a não ser o de encontrar comida. Ao amanhecer do terceiro dia, ela sentiu um desconforto ao abandonar as ruínas onde se refugiara durante a noite. A sensação de alerta só crescera nos dias que se seguiram, mas naquele momento estava deveras alarmante. Preparava-se para ir embora quando sentiu o odor de homens e de cavalos e poucos instantes após sentir o cheiro de cães, ouviu ao longe seus latidos frenéticos. Eram rastreadores.

Ela pegou tudo o que tinha e correu para um bosque próximo. Não conseguiu porém, se embrenhar nas árvores antes que homens e animais surgissem por detrás de uma colina e a avistassem. Pelo som e pelo cheiro, ela percebeu que parte da força se deslocou para o lado e outra veio diretamente em sua direção. Ela parou em uma espécie de clareira onde sentiu ser o centro do bosque e ali ficou, sabendo que não teria como fugir.

Os homens a seguiram a pé, pois os cavalos não entraram por entre as árvores, e quando o primeiro deles irrompeu em um ataque, a lança dançou, abrindo a garganta dele com a afiada ponta de osso. Do lado contrário de onde o homem viera, ela pousou o filho no chão e continuou a luta com mais deles que agora chegavam. Ela girou, e o homem mais próximo teve o rosto quebrado com a parte contrária da lança, e ao fim do giro, o próximo tinha a ponta fincada no centro do peito.

Outro a atacou com uma espada curta rústica, sendo derrubado por uma rasteira e morto em seguida pela lança da moça. Apesar de nunca ter se aprofundado nas artes da luta, ela manejava sua arma com certa maestria, derrubando todos os inimigos que se aproximavam. Sem contar quantos tinham sido, ela se lembrou do bebê. Ele chorava.

Ao se virar, vários homens tinham vindo pelo outro lado. Um deles que parecia ser o líder tinha seu filho nos braços. Quando ela fez menção de atacá-lo, ele levantou uma faca e apontou para a criança. A mulher largou a lança e caiu de joelhos às lágrimas em seu desespero, e dois homens a seguraram um de cada lado.

Ela tentou implorar, mas só conseguia soluçar. Aquilo era demais: primeiro sua aldeia onde pereceram marido, pai, mãe, irmão, tutor e amigos, e agora seu filho com tão pouco tempo de vida sendo ameaçado daquela forma covarde.

O homem pareceu se divertir com a situação. Malditos os homens puros que eram sádicos e cruéis. Ela não conseguia pensar, só queria que aquele momento acabasse.

O homem falou qualquer coisa em sua língua, em tom de sentença, e olhando para Zíe com desprezo cravou o punhal em seu filho.

Seu filho.

O grito de Zíe ecoou de forma tão terrível, que algum desavisado a quilômetros dali poderia ter confundido com o clamor do fantasma de uma mulher que era torturado em algum tipo de inferno. Apesar do sol já ter nascido, seus olhos se tornaram amarelos, garras se formaram onde um instante antes estavam suas unhas e seus dentes caninos se tornaram presas ameaçadoras.

O homem soltou o corpinho inerte da criança quando ela saltou sobre ele com um rosnado que mais parecia um rugido. Os homens que a seguravam de joelhos, nada puderam fazer para impedir, e caíram pesadamente quando ela saltou. Sem tempo de reagir ao inesperado ataque, o algoz do seu filho sentiu suas garras entrarem em seus flancos através da camisa de couro que usava, e suas presas se enterrando através de suas clavículas.

Ela dilacerou o ombro e o pescoço do homem a mordidas, ficando coberta com o sangue que jorrava. Quando viu que este estava morto, se voltou para os outros que se afastavam assustados e os atacou também. Não era mais uma luta de habilidades, era um animal feroz que abria brutalmente todos aqueles de quem conseguisse se aproximar. Um homem se aproximou por trás enquanto ela rasgava o peito de um deles no chão e feriu sua panturrilha. Ela se voltou para ele mas antes de saltar, um outro furou seu ventre. Um terceiro laçou seu pescoço com uma corda e puxou de forma que seu rosto se aproximasse do chão.

Em seu frenesi, ela colocou as duas mãos no chão e deu um impulso para se levantar, derrubando o homem da corda. O que a ferira inicialmente já estava a ponto de apunhalá-la, mas com um único golpe de suas garras, ela abriu sua barriga.

O outro tentou fugir, mas foi apanhado e morto antes do segundo passo. O que a havia laçado, estava quase de pé quando foi agarrado, então ela o virou de costas, e o degolou com as garras, enquanto seu olhar animalesco fitava o nada.

Ouviu então o som de cavalos. Eles estavam batendo em retirada, levando suas malditas montarias e farejadores. Ela se lançou em perseguição e em um instante estava fora do bosque, avistando alguns cavalos que avançavam a galope não a grande distância. Ela saiu em seu encalce, correndo tão veloz, que precisava se curvar à frente para manter o equilíbrio.

Rapidamente alcançou o cavalo mais atrasado, e saltou sobre ele, derrubando-o de lado. O cavaleiro rolou à distância, enquanto ela cortava a garganta do cavalo em plena queda.

Ela caiu com os pés e uma das mãos apoiadas no chão. O homem ferido ao avistá-la, esqueceu da dor da queda e foi tomado por um terror indescritível. Ela saltou sobre ele que tentava fugir se arrastando, e os dois rolaram no chão. Quando pararam de rolar, ela se levantou e o deixou inerte, três vezes mais rasgado do que quando caíra do cavalo.

Seu olhar era furioso quando ouviu ao longe os cavaleiros se afastando, em algum ponto que já nem era mais possível de se avistar.

Primeiro ela soltou um feroz rugido de animal selvagem, depois caiu de joelhos e chorou. Chorou longa e vigorosamente. Já não tinha mais olhos amarelos, garras ou presas, era apenas uma garota, bela, triste e coberta de sangue.

Sem perceber quanto tempo ali ficara, ela tentou se levantar, e só então sentiu os ferimentos, que doíam impiedosamente. Ela sangrara muito, além dos ferimentos serem profundos. Agora mais calma, ela se levantou ignorando a dor e se dirigiu ao cavalo que matara a poucos metros de onde estava. Devorou tanto quanto pôde e voltou para o bosque. Tudo estava onde fora deixado, inclusive o filho que tivera oportunidade de amar por tão pouco tempo.

Atravessou as árvores, embalou seu querido filho em algumas peles e o enterrou do outro lado, onde nenhum sangue fora derramado. Com o tempo que restou antes do anoitecer, ela se dirigiu a um riacho, se lavou e subiu uma parte dele a fim de não ser seguida caso eles voltassem. Os planos que se formavam em sua mente, exigiam que ela estivesse completamente curada quando os visse novamente. Após encontrar uma formação rochosa, ela se escondeu e se cobriu com a única pele que não deixara na pequena sepultura de seu filho.

Ali, entre cochilos e pesadelos esperou chegar a noite e depois a alvorada. Durante o dia, tratou de se cuidar. Os ferimentos já estavam quase fechados ao amanhecer, então ela caçou, comeu, bebeu e tornou a comer. Pouco depois do meio dia, mal restavam sinais em seu corpo de que algum ferimento pudesse ter existido algum dia.

Agora era hora de seguir adiante.




segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Poder Selvagem: A Fúria Materna (Parte 1)


O amanhecer daquele dia, já trouxe um desafio a Zíe: uma grande dificuldade que ela sentiu ao abrir os olhos e abandonar os belos sonhos em que estava imersa, trazendo-lhe o pressentimento de que o dia seria difícil.

Um rápido olhar ao redor e outro ao lado para constatar que tudo estava em ordem e que seu bebê dormia tranquilamente. Não foi animador observar a gruta em que dormira precariamente aconchegada nas peles que trazia consigo, se lembrando do belo banquete de seu sonho onde puros e mestiços confraternizavam alegremente. Mas tempo para sonhos terminara onde se iniciava mais um dia de sobrevivência.

Sem demora se levantou, o que fez a criança também acordar. Enquanto amamentava, ficou pensando nos momentos derradeiros de quando sua aldeia fora destruída.

Por milênios os mestiços viveram ali. Nunca se proliferaram muito e nunca expandiram o território, pois a tradição contada pelos anciãos geração a geração ensinava que a maldade que existia no mundo não poderia corromper a sua raça, pois se assim fosse, essa mesma maldade cobriria todos os povos. Assim, eles viveram isoladamente nas florestas geladas ao norte.

Nunca fizeram mal a nenhum outro povo. Só se contavam histórias de duas ocasiões onde o membro de algum clã ou povoado puro desaparecera nas terras destinadas aos rituais de soltura da fera. Muito também era contado entre estes sobre o avistamento de criaturas para os quais eles davam qualquer nome, ou mesmo de carcaças de animais completamente destruídas.

Na geração de Zíe, eram muito poucos os remanescentes mestiços, totalizando treze pessoas divididas em três famílias. Nenhum deles soube como tantos assaltantes surgiram simultaneamente. Talvez tenha sido uma união de vários povos, mas isso não importava. O cheiro dos atacantes os precedeu, mas como nunca em sua história os mestiços tinham sido atacados ali, nenhuma grande defesa pôde ser preparada. De início eles se defenderam sem problemas, dos mais velhos aos mais jovens da aldeia. Uma montanha de corpos se formou antes que o primeiro mestiço caísse, o que só ocorreu, quando três hordas ainda maiores os atacaram de direções diferentes.

O ancião que ainda lutava mesmo transpassado por três lanças ordenou a Zíe que fugisse com seu filho e a garota obedeceu sem questionar, embora suas lágrimas jorrassem dos olhos.

Quatro luas tinham se passado desde então, sem que ela parasse de vagar, a maior parte do tempo para o sul ou para o leste.

Na saída da gruta, sentiu o vento fresco bater em seu rosto, que apesar de sujo, da expressão dura e dos cabelos desgrenhados, continuava belo. Com o bebê no braço esquerdo, uma lança com ponta de osso na mão direita e sua escassa bagagem às costas, iniciou a caminhada do novo dia.

Agora que caminhava, sentia o estômago roncar, entretanto não sentia o cheiro de caça em direção alguma. O sol já estava alto quando sentiu algo diferente no ar mais adiante. Com toda cautela possível, avançou até divisar ao longe o que parecia um pequeno vilarejo com uma dúzia de casas rústicas.

Normalmente ela se afastaria, mas algo estava diferente: não sentia nem ouvia pessoas alguma naquele local. Um forte impulso tomou conta de Zíe, uma mistura de curiosidade, com impetuosidade e com a fome que crescia. Ela precisava checar, talvez encontraria algo ali. Antes porém que iniciasse a aproximação, um momento de razão a fez refletir melhor. O que estava fazendo? Para que todo o cuidado que tivera até então se iria simplesmente se entregar ao perigo gratuitamente? Ela entendeu que a razão começava a lhe faltar; já não praticara o ritual de soltura por muito tempo.

Antes que começasse a se afastar, sentiu um agradável odor na direção que desistira de seguir, talvez fosse um javali ferido dentro do vilarejo fantasma. O estômago roncou, e os sentimentos imprudentes voltaram todos, com ainda mais força.

Sem que se desse por si, já estava entre as edificações. Não sentia mais o odor de antes, talvez tivesse sido uma breve rajada de vento favorável, talvez tivesse sido uma alucinação. Ela já se sentia frustrada quando percebeu um movimento atrás de uma casa, fazendo seu coração pular. O bebê sentiu sua explosão de adrenalina, pois também se agitou. Em um instante, ela se atirou para dentro de uma casa maior que se encontrava perto de onde estava e que por sorte não tinha a porta bloqueada.

Em instantes sentiu novamente o cheiro de sangue de javali, mas não sozinho. Tinha também cheiro de homens. Como pudera ser tão estúpida? Como ignorara tão debilmente seus instintos, que em nenhum momento pararam de alertá-la?

Pelas vozes notou que eram três, provavelmente trazendo o resultado de uma caçada. Ela não compreendia a língua em que eles falavam, mas notou claramente a tensão no ar quando de súbito eles pararam de falar parando perto da casa onde ela entrara. A porta ficara aberta.

O bebê inquieto em seus braços à beira do choro também não ajudava. Quando viu as sombras preencherem a porta, não tentou se esconder, apenas jogou algumas peles no chão e colocou o bebê carinhosamente sobre elas. Sequer se lembrou da lança que ficara encostada perto do bebê.

Quando se levantou, os três desconhecidos já estavam à porta, olhando perplexos para ela. O olhar de perplexidade não durou muitos instantes. Só pela expressão que tomou conta de seus rostos barbudos ela já sabia muito bem o que eles iriam fazer, mesmo que não tivesse sentido o odor de cio masculino que eles passaram a exalar ao observá-la.

O maior deles começou a sorrir com deboche e fez um comentário qualquer com os companheiros que também começaram a sorrir. Em seguida avançou calmamente na direção dela sem sequer dar atenção para a criança no chão. Ela se manteve firme no local com um olhar inexpressivo.

Ele pegou seu braço e puxou, falando algo que soava como uma ordem. Ela não se moveu.

Ele lançou um súbito olhar de fúria e puxou com muito mais força. Ao ver que o braço dela sequer tinha se movido, como se fosse uma estátua, o homem pareceu ao mesmo tempo assustado e confuso. Como aquela camponesa miúda poderia ser tão forte?

Mas ela era forte, e também rápida. Sem que ele se desse conta, uma fração de segundo depois era ela quem segurava seu antebraço. Ele teve tempo de arregalar os olhos de terror antes que a dor tomasse conta de seu rosto. Com um pequeno movimento, ela partiu o antebraço dele, resultando em uma terrível fratura exposta. Em seguida, soltou o braço quebrado e segurou sua cabeça, empurrando o homem para o lado e para baixo apenas com a força do braço. Ela acertou a sua têmpora no canto de um móvel que estava ao lado, podia ser um baú, uma mesa, ou qualquer coisa, para ela não importava. O homem desfaleceu com a lateral de sua cabeça esmagada.

Tudo isso aconteceu muito rápido, de forma que os outros dois tomados de assombro não tivessem tomado nenhuma ação até então. Um deles então trocou a perplexidade por fúria e avançou sobre ela sacando um machado pequeno, seguido do outro com uma adaga. O primeiro golpe veio ligeiro, mas ela foi ainda mais. Esquivou-se do machado e deu um encontrão no atacante atirando-o contra a parede, se voltando para o segundo que já tinha o golpe de adaga pronto. Com um rápido movimento reto, Zíe acertou a o pulso com a mão aberta contra o rosto do homem que foi jogado para trás com o nariz e os dentes da frente quebrados. Então se lançou à frente agarrando o pescoço do homem em pleno ar e o puxou de volta acertando o joelho em sua barriga.

Finalizou-o esmagando seu pescoço com um breve e poderoso apertão, jogando-o para o lado em seguida. Um breve relance ao bebê que chorava no mesmo lugar onde fora colocado, e ela se voltou para o terceiro que já se levantara, mas não com menção de novo ataque, e sim de fuga. Sem demora, ele se lançou porta afora com ela no seu encalço.

Ao invés de segui-lo, ela parou abruptamente ao perceber um amontoado de pedras arredondadas que estava perto da porta por algum motivo qualquer. Rapidamente se abaixou e pegou uma pouco menor que um crânio humano e antes que o fugitivo desaparecesse por entre as casas, ela atirou a pedra. Um baque surdo se fez ouvir quando o projétil acertou em cheio a cabeça do homem que caiu e ali ficou.

Quando o odor do seu sangue chegou a Zíe ela deixou se esvair parte da fúria. Agora estava exposta. Não tanto quanto se um deles tivesse sobrevivido, mas aquelas mortes poderiam atrair atenção que ela não desejava. Desde que fugira não fazia idéia de onde estaria indo, mas ao menos não atraíra atenção.

Até agora.






Continua...



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O Chamado do Além


Começou durante a minha puberdade, com 12 anos mais precisamente.

Em uma noite de outono, não lembro a data exata, acordei no início da madrugada com uma gritaria na vizinhança. Normalmente essas coisas não me incomodavam, mas naquele noite os vizinhos estavam jogando truco mais vigorosamente do que qualquer vez que eu já tivesse presenciado. Aparentemente a festa estava animada.

Contei carneiros, cantei mentalmente, rezei, me virei na cama e depois de não sei quanto tempo consegui pegar no sono novamente. Nem sequer reparei se os gritos e sons da festa tinham cessado ou se o cansaço finalmente tinha me dominado. Certo tempo depois acabei acordando de novo com barulhos, mas desta vez não eram gritos e sim uma voz que falava dentro do próprio quarto. Eu estava confuso devido ao sono, e assim por alguns momentos só fiquei ouvindo aquela voz da qual eu não entendia uma só palavra, sem pensar em mais nada. O susto veio quando o raciocínio voltou ao normal.

Não era a voz nem do meu pai e nem da minha mãe portanto só podia ser um invasor no quarto. Olhei para a direção de onde o mesmo vinha e reparei em uma forma escura, meio transparente no canto do quarto, como se fosse um homem translúcido agaixado no canto do quarto, de costas para a minha cama e falando consigo mesmo. O pavor tomou conta de mim de modo que fiquei paralisado; não conseguia gritar pelos meus pais no quarto ao lado, nem sair correndo dali. Quando imaginaria que veria uma assombração no meu próprio quarto? Devo ter desmaiado em seguida pois não lembro o que se seguiu a isso. Na manhã seguinte assumi que tivera um pesadelo e segui com minha rotina.

Acontece que a partir daí, comecei a ter sonhos e pesadelos similares com certa frequência. Não eram como nos sonhos comuns, onde nós vemos imagens desconexas, situações absurdas e mudanças repentinas. Nessas ocasiões era muito real, chegando uma vez ou outra a tomar consciência de que estava sonhando.

Algumas vezes acontecia de forma mais simples, eu me via caminhando pela casa, pela rua ou ainda por lugares desconhecidos, de vez em quando alguém falava comigo, mas muito raramente eu me lembrava de uma ou duas palavras. Mas também tinham ocasiões desagradáveis. Eu muitas vezes vi um homem no quarto dos meus pais, ele era muito feio, embora hoje eu não consiga me lembrar de sua exata fisionomia, eu sei que me assustava. Ele não gostava de mim, pois me lembro de sempre me olhar com uma expressão zangada e uma vez até ter corrido atrás de mim.

Não raramente eu acordava paralisado na cama. No início isso me causava muito pavor, mas com o tempo me acostumei com a situação. Outra coisa que me deixou muito assustado, foi um sonho onde a casa em que eu morava estava completamente revirada, como se tivesse sido saqueada, e muitas pessoas estavam no quintal fazendo barulho.

Um dos piores foi quando eu me vi numa estrada escura, e quando tentei correr dali, encontrei com um homem deformado, com uma corcunda enorme, como se fosse um tumor saindo de sua pele pelas costas e se projetando para a esquerda. Ele me perseguiu e tudo o que eu desejei naquele momento foi que aquilo acabasse e que eu acordasse na minha cama. Felizmente foi o que aconteceu, e eu me vi deitado, ofegante e suando frio. Nesta noite não pude mais dormir.

Isso me fez finalmente contar para minha mãe o que eu vinha passando, fazendo ela pensar imediatamente que eu estava enlouquecendo; já meu pai nem deu muita atenção. Minha avó que veio a saber pouco depois já cogitou que eu estivesse sendo influenciado pelo diabo. Felizmente não fui submetido a nenhum ritual de purificação ou de exorcismo, pois apesar de minha família ir ocasionalmente à igreja católica, eles não eram muito religiosos. Ao invés disso, fui levado a um psicólogo que depois de ouvir tudo o que eu lembrei e me dispus a contar, concluiu que por eu ser filho único, eu era solitário fantasiava as coisas para chamar atenção. Pelo menos não me foi receitado nenhum remédio.

Para sanar isso, meus pais começaram a me envolver em todo tipo de atividades. Aprendi a tocar violão, a jogar futsal, a nadar, entre outras coisas. Fiz alguns amigos nessa época também. Mas os "sonhos" continuaram, sem que eu contasse para mais ninguém. Minha mãe se deu por satisfeita por eu não tocar mais no assunto e a vida seguiu.

Com o tempo as experiências comaçaram a rarear, até que dois anos depois elas cessaram. Me lembro que a última que tive nessa época foi tão vaga que quase confundi com um sonho. Alguma coisa que guardei dentro de mim me dá a certeza que não foi, mas mesmo assim não resta quase nada na memoria.

Eu estava deitado, quando senti que estava sendo chamado. Me senti subindo, como se minha cama estivesse em um elevador, mas eu nada conseguia enchergar. Em seguida eu lembro de estar no quintal de casa, mas não estava escuro, era como se tivesse um holoforte apontado direto para aquela parte onde eu estava. E eu ria, mas ria muito, me sentia muito feliz, realizado, em paz. Foi tudo o que consegui me recordar..

O que se seguiu a isso foi uma vida normal de adolescente. Aos poucos esses sonhos diferentes foram deixando de fazer falta e com o passar dos anos, quase esquecidos. Veio o fim do colegial, seguido da faculdade, os primeiros anos de emprego e depois outro emprego.

Eu já estava bem estabelecido, há meia década entrara na casa dos vinte anos e estava morando sosinho, pagando minhas próprias contas. Uma noite eu acordei depois de sonhar qualquer coisa boba que já não lembro. Estava de lado, e me virei de barriga para cima para fitar o teto; eu sentia o sono mas por outro lado não queria dormir, sem saber no entanto o motivo. Quando fui tentar virar para o outro lado percebi que não conseguia me mover, nem sequer um dedo do pé. Foi automático, a primeira coisa que eu me lembrei foi daquilo que vira há anos, o ser escuro e transparente que estava abaixado no canto do quarto. Sentindo que meu pescoço estava paralisado, de alguma forma consegui olhar de lado. Hoje quando me lembro não consigo entender ao certo qual foi a sensação pois ao mesmo tempo que eu estava com a cabeça paralizada na direção do teto, eu conseguia olhar de lado como se tivesse dois pescoços e duas cabeças sobrepostos. Desta vez o quarto estava vazio, não tinha nenhum ser ali.

Fiquei muito agitado por estar naquela situação. Depois de tanto tempo porque voltaria a ter sonhos reais como antes? Eu não queria, não podia. Eu então era um adulto, não tinha mais cabeça para tais fantasias. No entando estava eu ali paralisado como ficava na adolescência. Passados alguns momentos, os movimentos voltaram repentinamente, e me sentei na cama de um salto. Me levantei para beber água e em seguida voltei a me deitar, sem conseguir adormecer por mais de uma hora.

Nos primeiros dias após o ocorrido fiquei pensativo com essa situação: "será que estou entrando novamente naquele ciclo?". Minha vida estava completa, eu estava crescendo no meu emprego, estava finalmente conhecendo uma garota legal com quem pudesse ter um relacionamento; eu não entendia o porquê disso. Passaram-se semanas e eu comecei a esquecer novamente do caso, até que um dia adormeci sentado enquanto lia um livro. Eu acordei em dado momento, mas o sono era tanto que eu simplesmente nem abri os olhos, só fiquei ali no conforto da poltrona. Depois de alguns instantes, comecei a tombar para o lado e pensei que fosse me estatelar no chão. Não consegui me mover para impedir a queda, simplesmente caí e então a surpresa: eu cheguei ao chão leve como uma pluma.

Tentei me levantar, mas os membros estavam duros e pesados sendo que com muita dificuldade eu consegui levar os braços para frente tentando me arrastar. Além disso, eu estava ainda de olhos fechados, sem conseguir abrí-los apesar do esforço. Me arrastei alguns metros sem entender o que acontecia: eu me sentia leve, mas ao mesmo tempo sentia o corpo endurecido, como se meus braços e pernas pesassem uma tonelada. Depois de algumas tentativas a mais de me mover, ao colocar a mão no chão, eu subi pelo ar, como se fosse uma bexiga cheia de gás hélio e ali fiquei à deriva. Não enchergava onde estava e pelo espaço em que eu senti me deslocando, não parecia que estava na minha sala, foi quando tentei desesperadamente abrir meus olhos, fazendo toda força que poderia fazer nas pálpebras, e assim eles se abriram.

Eu me vi sentado na poltrona com o livro entreaberto no colo. Fora mais um daqueles sonhos. Mas que tipo de "sonhos" eram esses? Eu não sentia necessidade de chamar atenção de ninguem. Será que eu realmente estava enlouquecendo? Decidi então ignorar isso, certo de que iria parar e mais rápido do que antes..

Mas não parou.

Eu tinha a impressão de que a coisa voltara com mais força, pois bastava um cochilo qualquer que eu já sentia o corpo paralisado. E não só isso, agora eu também sentia algo muito forte, uma espécie de formigamento, um choque elétrico que percorria meus ossos e se expandia até a pele. O susto maior foi alguns dias atrás: algumas horas antes do despertador tocar, eu senti uma sensação parecida com aquela que senti na poltrona. Após uma rápida ida ao banheiro eu adormeci rapidamente, mas logo senti uma sensação de como se estivesse rolando da cama. Nem cheguei a cair no chão, eu simplesmente subi pelo ar, mas desta vez eu estava enchergando tudo na penumbra, e quando olhei para trás eu me vi deitado na cama, de barriga para cima, com a cabeça semi-virada para a esquerda e com o braço direito sobre o peito. O susto foi muito forte.

No mesmo instante abri os olhos. Apesar de não estar paralisado, fiquei imóvel por uns momentos devido ao susto. "Não é todo dia que você sonha que morreu" eu pensei. Mas então reparei que meu braço direito estava sobre o peito, tal como eu vira anteriormente. Nessa noite não consegui mais dormir. Não eram sonhos, alguma coisa realmente estava acontecendo. Eu precisava pedir ajuda, mas não sabia como, não sabia para quem, estava perdido; totalmente perdido.

Fiquei dias sem ter coragem de falar com alguém. Nesse espaço de tempo tive algumas experiencias parecidas com a em que me vi deitado.

Há alguns minutos tive uma outra experiência, talvez a mais forte de todas. Eu tinha deitado há pouco tempo quando me veio à cabeça a idéia de rezar. Isso já acontecera antes, mas eu nunca dei muita atenção ao lado religioso da vida. Neste dia eu tentei. Eu não sabia se rezava para o anjo da guarda, se para esse ou aquele santo, se para Jesus, ou para quem. Então me veio outra idéia, de que eu não precisaria rezar para ninguém específico, bastaria pensar em amor. Que tipo de amor? Sinceramente não sei, eu me lembro que foi isso que pensei na hora. Enquanto eu meditava sobre o "amor", pensei em muitas coisas, pessoas que conhecia, que não conhecia, animais, florestas, campos, mares, e assim adormeci.

Sonhei que estava sentado na varanda de casa olhando para a rua vazia, mas logo em seguida me vi deitado novamente na cama. Não tentei me mover para ver se estava paralizado, só fiquei ali. Ouvi um som de vento bem fraco, ao longe. Percebi depois de alguns instantes que esse som aumentava gradativamente até se tornar bastante audível. Por fim, quando o som chegou até mim, senti algo atingindo minha cabeça. Não senti dor, mas no impacto, o que pensei ser meu corpo fez um movimento como se tivesse quicado da cama e foi subindo vagarosamente. Eu não me sentia ameaçado, estava muito em paz, portanto me deixei levar.

Quando dei por mim, estava de pé na calçada, em frente de casa. Não sei explicar, mas eu me sentia muito inteligente naquele momento, como se eu entendesse tudo o que eu não entendo hoje. Não posso dizer o que eu entendia que não entendo mais, pois simplesmente não me lembro. É mesmo confuso de se explicar, pois é totalmente confuso para mim até mesmo de se pensar no assunto.

Mas a parte que eu me lembro perfeitamente é de ter visto um garotinho que aparentava ter uns sete ou oito anos brincando de se pendurar no portão como qualquer outra criança. Também me lembro perfeitamente do que ele disse depois de alguns momentos, quando ele percebeu que eu o olhava:

- Você demorou. Por acaso tem o costume de lavar os ouvidos?

- Os ouvidos? - Eu não entendi logo o que ele quisera dizer.

- Eu canso de te chamar e você só dorme. - Ficou rindo por uns instantes, então continuou: - Você já percebeu há muito que o que vem lhe acontecendo não são sonhos não é verdade? Então por que ainda não procurou ajuda, por que ainda não descobriu o que é tudo isso?

Então finalmente eu consegui falar:

- Realmente eu concluí que não eram sonhos, mas então por favor me explique o que é tudo isso?

Ele sorriu cordialmente. Apesar de ser um garotinho igual os que vemos todos os dias na rua, seu semblante era tão sábio que era como se eu estivesse falando com um ancião. Um instante depois respondeu:

- Acha que vou te privar da melhor parte? Não. Seu caminho está só começando. Você tem muito o que aprender, tem inteligência e recursos suficientes para isso. Eu te conheço muito bem para ter certeza disso.

- Mas... - O olhar que ele lançou em seguida me fez entender que não era ali que eu iria obter respostas, e sim buscando por mim mesmo, por isso eu não deveria terminar a pergunta que começara. Não sei como ele conseguiu transmitir tudo isso apenas com o olhar amistoso que fez, mas de alguma forma conseguiu. Em seguida ele continuou:

- Nossa conversa fica por aqui, pois você tem muito o que fazer, certo?

Não resisti e perguntei:

- Voltarei a ver você?

Imediatamente ele respondeu:

- Mas é claro! No entando você deve entender que por um bom tempo isso provavelmente não voltará a acontecer.

Assenti com a cabeça compreendendo que ele falava sério. Por fim ele se aproximou e disse:

- Então está na sua hora. muita paz e muita luz para você. - A última coisa que me lembro foi o leve tapa brincalhão que ele me deu no ombro.

Depois disso acordei na cama com uma sensação fortíssima de paz e com uma idéia na cabeça: registrar tudo o que vivi até agora.

O diálogo acima foi a forma mais fiel com que consegui transcrever o que conversei com aquele garotinho tão sábio e, que agora com toda certeza sei que não foi um sonho, assim como todas as experiências anteriores.

Este texto é o registro do primeiro passo de muitos que darei para entender o que acontece comigo e por quê acontece.

Muito obrigado a você que leu minha história. Te desejo sempre muita paz e muita luz.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Relato de um Sobrevivente


Nos tempos de estudante, tive a péssima idéia de fazer intercâmbio. Eu já vinha com essa idéia na cabeça há bastante tempo, desde o ginásio. Quando eu comecei o primeiro ano em 97, surgiu a oportunidade em uma daquelas promoções que passavam na televisão todo início de ano. Meses se passaram até que eu conseguisse toda a documentação necessária, sendo que quase desisti por não ter muita paciência com burocracia. Apesar disso, ficou tudo certo para eu ir para os EUA no ano seguinte. Fiquei radiante com a novidade: "Nossa! De tantos países, eu vou logo para os States!? Que show!" eu pensava.

Em abril chegou à carta dizendo que eu embarcaria no dia 27 de maio. Nessa mesma carta eu fiquei sabendo o nome da cidade para onde eu iria: Raccon City. Quando chegou a data, eu estava eufórico. Deveria me situar antes de julho, já que era aí que começava o 2º semestre juntamente com as minhas aulas.

A viagem foi tranqüila, mas a recepção não foi nada calorosa. Ainda no aeroporto da cidade vizinha, eu vi em um jornal a foto de uma moça literalmente rasgada; a manchete dizia que ela tinha sido assassinada nas montanhas Aklay, nos arredores de Raccon.

Bem, quando eu digo "cidade vizinha" é mesmo um modo de dizer, pois ela fica à 1h de viagem de Raccon. Até me admirei com o fato dessa cidade ser tão isolada (literalmente no meio de uma floresta) e ao mesmo tempo tão desenvolvida.

Não demorei a conseguir um emprego. Comecei a trabalhar como entregador em uma lanchonete, o Emmy's, que ficava perto do centro. Conheci a cidade em pouco tempo, era grande, e crescia cada vez mais pelo que pude perceber.

Os tais assassinatos continuaram, um mais estranho que o outro. Meu colega Jimmy, disse que havia visto um enorme cachorro saltando sobre um homem, quando andava nos arredores da floresta perto de sua casa que ficava um tanto afastada.

Na ocasião, ele chegou ao trabalho totalmente pálido, quase sem respirar. A polícia achou o corpo todo mutilado e com a cabeça arrancada. Eu não sabia o motivo, mas quando corpos eram encontrados nesse estado, eram incinerados, e quando perguntei a um policial o porquê disso, ele disse que nem os oficiais sabiam; eram ordens superiores.

Eu comecei a estudar. Não cheguei a fazer grandes amizades, já que eu era quieto demais e, além disso, senti certo preconceito talvez por ser estrangeiro.

Devido à continuação dos crimes, aquela equipe especial, os S.T.A.R.S., foi investigar a floresta. Quando vazou para a imprensa que eles tinham voltado relatando coisas como monstros, mortos-vivos e coisa parecida, eles viraram motivo de piada. A polícia chegou a perder sua credibilidade.

Com o passar dos meses, as coisas pioraram. No final de agosto, foi decretado toque de recolher a partir das nove e meia da noite, devido aos assassinatos que aconteciam cada vez mais perto da cidade. O medo cresceu dentro de mim, e me fez tentar comprar uma arma. Fui a uma loja de armas da cidade, mas não consegui comprar nada. O vendedor foi irredutível.

A partir do dia nove ou dez de setembro, as coisas saíram totalmente dos eixos. Começou a acontecer um surto de uma espécie de "sarna humana" na cidade, sem falar na dor de estômago. Não havia um só dia em que eu não ouvisse alguém reclamar de coceiras ou de enjôos, além de outros sintomas. Quando foi se aproximando o dia vinte, o hospital ficou um caos. Além disso, foi mais ou menos aí que os moradores perderam de vez a cabeça. Isso já tinha começado alguns dias antes, mas só foi nessa hora que saiu de controle. Pessoas atacavam umas às outras, mordiam, pareciam tentar devorar-se. Alguns foram mortos, a mordidas, a tiros, a pauladas, enfim. No dia dezoito, Jimmy chegou ao trabalho de um jeito estranho, pálido, se coçando insistentemente e sem falar coisa com coisa. Nesse dia não havia entregas devido ao caos que se formava na cidade.

Cerca de uma hora após o inicio do expediente, ele começou a me olhar de um jeito estranho, mas eu fingi não perceber. Sem mais nem menos, ele se levantou e veio na minha direção: segurou-me no braço e tentou me morder. Rapidamente, afastei seu braço e dei-lhe um soco no olho, derrubando-o. Ele caiu no chão e disse: "Desculpe... Fome...", em seguida, se levantou e saiu resmungando. Ninguém além de mim e uma balconista, a Lisa presenciou essa cena, já que a lanchonete estava vazia.

A coitada da moça, quase teve um ataque do coração quando a polícia ligou dizendo que Jimmy estava morto. Ele tinha atacado uma moça minutos depois de sair do Emmy's, mordendo-a no pescoço. Um policial atirou em sua cabeça com uma espingarda.

Tive um ataque de medo com essa história. Eu só pensava em abandonar tudo e voltar para casa. Deixei a moça lá e fui para o telefone dos fundos, tentando ligar para o Brasil; em vão, pois não havia linha. Saí de lá, chamei um táxi e perguntei se poderia me levar para fora da cidade. Ele me disse que todas as saídas estavam bloqueadas por militares e que se eu quisesse mesmo ir embora, deveria ir pela floresta (ironicamente é claro).

Comecei a me desesperar. Voltei para dentro para avisar Lisa que tentaria ir embora, mas não a encontrei. Saí correndo direto para a casinha que eu tinha alugado (que ficava perto da lanchonete), e me tranquei lá. As ruas estavam desertas, não se via uma só alma viva por ali. No dia seguinte, começaram os gritos, tiros e alvoroço na rua; eu não tinha coragem nem de abrir a cortina. Esse caos reinou por três dias até dar lugar a um silêncio fúnebre. Assim ficou até o dia 27, quando fiquei sem comida. Como a calmaria reinara durante todo aquele dia, ao cair da noite resolvi me esgueirar silencioso até a lanchonete.

Fui o mais rápido que pude. Não vi ninguém nas ruas, embora, sempre tivesse a impressão de ver alguém ou algo se mexer nas sombras. Como não vira nada, não dei atenção e continuei.

Chegando lá, encontrei a porta arrombada e ouvi gritos lá dentro que pareciam ser de Lisa. Ao entrar, vi um homem estranho mordendo o ombro dela, que gritava desesperadamente. Sem pensar duas vezes, arranquei-o de seu ataque e lhe acertei um soco no queixo, que o afastou. Cambaleando, ele me atacou, com um ruído estranho, parecido com um gemido e, eu no auge da minha fúria, peguei uma cadeira e golpeei-o com toda força, espatifando o móvel. Vendo ele se levantar, sem ao menos conseguir raciocinar, eu peguei uma lasca da cadeira e enterrei no seu peito derrubando-o novamente. Foi aí que voltei a mim, pensando "Meu Deus! Matei o cara!" e me voltei para Lisa estirada no chão atrás do balcão; seu sangue vazara aos montes e ela já agonizava. Ela tentou me dizer alguma coisa, mas antes que conseguisse parou de se mexer. Nunca soube o que ela queria me falar. Foi aí que ouvi um ruído, e voltando-me para onde tinha derrubado aquele indivíduo, vi-o de pé preparando-se para avançar novamente, mesmo com aquela lasca fincada no peito. Nesse momento, passaram-se mil coisas pela minha cabeça, mas a única delas que á importante de ser citada aqui é esta: Pela primeira vez, voltou-me à memória aquele fato dos S.T.A.R.S. terem falado sobre mortos-vivos... Era loucura, porém a única explicação que eu poderia considerar.

Uma última olhada para Lisa e depois corri para a porta (nem tive tempo de chorar por ela); antes de sair, olhei para o homem só para constatar o óbvio: ele vinha em meu encalço. Saí de lá.

Na rua, percebi um homem parado na calçada oposta, de costas como se procurasse por algo, mas não me atrevi a lhe chamar atenção. Mais a diante, uma mulher de vestido branco, também parada, voltada para o meu lado. Quando comecei a me afastar, ela gemeu e veio cambaleante.

Virei-me para começar a correr, mas nesse momento, vi outro homem se aproximando de mim, já a menos de três metros de distância. Indo para o meio da rua, e vi surgirem como que do nada, mais três pessoas no mesmo estado, cercando-me. Aparentemente eu chamara atenção dessa multidão com a luta na lanchonete. "Porque a gente só percebe o perigo quando a merda já ta feita?", pensei.

Saí correndo pela rua, empurrando uma senhora que me bloqueava o caminho, nem vi se ela caiu ou não. Correndo desesperadamente, cheguei a um cruzamento e parei para tomar fôlego, olhando para trás, vi todos aqueles mortos-vivos que classifiquei como "zumbis" vindo, e cada vez aparecendo mais. Quando comecei a correr de novo, um vira-lata de tamanho médio, e quase sem pêlos, saltou em meu caminho, a uns dez metros de mim. Com um rosnado surdo, veio em disparada na minha direção; em um movimento rápido, tateei minha lateral, e encontrei uma tampa de lixeira e acertei-o no focinho com toda força, fazendo-o cair rolando no chão sem se levantar mais. Mas ao fazer isso, também caí. Ao olhar para trás, vi um daqueles zumbis quase me agarrando, mas me levantei rapidamente e chutei seu estômago. Corri mais alguns metros e vi uma moto caída com a chave no contato, Montei nela e dei a partida, saindo em disparada em direção ao centro. Quanto mais perto de lá eu chegava, mais estragos eu via (carros batidos, vidraças quebradas, corpos espalhados, tanto caídos como de pé, etc.).

Tentei chegar à loja de armas para pedir ajuda, mas quando me aproximei alguns quarteirões de lá, não pude seguir de moto, devido às barricadas que havia nas ruas.

Tive que seguir a pé, em meio a uma horda de zumbis (fui agarrado duas vezes, mas tive a sorte de não estarem em muitos nessas ocasiões; consegui seguir sem ser ferido); nunca corri tanto em minha vida.

Chegando lá, quase fui executado pelo lojista. Depois de alguma conversa, ele disse que alguns policiais o tinham contatado há algumas horas, perguntando-lhe por seu armamento, mas como não restavam mais armas devido à distribuição dois dias antes, não pôde ajudar. Pedi para me acompanhar até a delegacia, onde agora pensava que teríamos mais chances, mas ele se recusou a sair da loja; tudo o que fez, foi me dar uma pistola e um pouco de munição, ficando apenas com uma espingarda.

No caminho da delegacia, não houve grandes incidentes, bastou pular algumas grades e muros. No pátio, me dirigi para a porta principal, mas ao me aproximar, vi um helicóptero passando bem acima de mim. Gritei o mais que pude, pulei, agitei os braços, mas não adiantou.

Ao parar de gritar, ouvi uma respiração alta na direção da entrada; virando-me, tive uma visão terrível: uma "coisa" grudada na parede acima da porta como uma lagartixa, se parecia com um homem, mas tinha garras enormes, os músculos e cérebro expostos, como se fosse vinda do inferno. Aquilo saltou em minha direção, eu me afastando e atirando, fiz com que ele caísse inerte no chão. Aproximei-me dele para vê-lo melhor, julgando que estivesse morto, mas a um metro de distância, a coisa abriu a boca e soltou uma língua enorme em minha direção. Devido a uma esquiva rápida, eu me salvei e corri para o portão da frente pensando: "Até parece que eu vou entrar nesse ninho de pesadelos...".

Fui andando pelas ruas sem rumo. Zumbis vinham de todos os lados; cheguei a gastar um pente inteiro, mas sempre surgiam mais deles. Pulei em um bueiro que estava aberto, na esperança de que não houvesse mortos nos esgotos. Não andei muito até dar de cara com um ninho de baratas, cada uma maior do que um rato. Não me aproximei e voltei para pegar outro caminho.

Ao passar por uma grade, me deparei com um grande labirinto de galerias e encanamentos. Andei por alguns minutos sem problemas, mas ao dobrar um corredor, encontrei uma aranha do tamanho de um bezerro. A luta foi difícil, por duas vezes ela quase me pegou. Quando ela morreu, eu já não tinha mais balas.

Mal comecei a andar, e outra maior ainda apareceu. Minha vida passou diante dos meus olhos nesse momento; mas a tensão durou pouco, pois dois segundos após ela aparecer, uma rajada de balas atingiu o aracnídeo, matando a criatura imediatamente. Era um homem esquisito, vestido como soldado e usando a logo da Umbrella Inc., aquela empresa farmacêutica que controlava a cidade toda. Ele se mostrou admirado por encontrar alguém ainda vivo, mas estava extremamente pálido e abatido. Conversamos por algum tempo, e depois saímos do esgoto. Dirigimo-nos a um lugar seguro mostrado por ele, um escritório que ficava em um prédio pequeno no coração da cidade. Ali ele me contou tudo o que havia acontecido, desde os assassinatos na floresta, até o surto de mortos-vivos, causados pela bendita Umbrella, que secretamente produzia armas biológicas. Também contou que a empresa designara um verdadeiro exército de mercenários para combater as criaturas que se espalhavam pela cidade, mas era tudo uma farsa e todos haviam sido mortos durante a luta. Ele também dizia estar com os dias contados, pois fora mordido no braço 3 horas antes de nos encontrarmos e iria se tornar um deles. Até então eu não parara para pensar que aquele mal era transmitido através da mordida. Esse mercenário era condenado à morte antes de ser contratado pela Umbrella e disse que se soubesse do que lhe esperava, preferiria ter sido executado.

Não vou entrar em detalhes sobre o que ocorreu em seguida, pois ele se matou na minha frente, não sem antes me ensinar a usar um fuzil e explicar que para matar zumbis, eu deveria atirar diretamente na cabeça.

Depois disso, não houve nada de interessante, até o dia seguinte, quando com um rádio achado no corpo de outro mercenário no qual eu reparei mais tarde, consegui contatar outros sobreviventes, que diziam estar em um galpão a leste da cidade, mas pensei: "Como eu iria chegar lá?" Eu mal sabia onde estava. Via rádio, eles me mandaram subir no local mais alto que pudesse, pois eles me mandariam um sinal em exatos dez minutos. Como eu estava em um prédio de três andares, foi o suficiente, pois ao leste, não havia obstáculos, assim, a visibilidade era total. Na hora marcada, vi um sinalizador sair de um ponto conhecido no bairro de dona Helga, uma senhora que sempre pedia um X-Burguer e um refrigerante diet ás sextas feiras. Coloquei-me em movimento.

No primeiro quarteirão, não houve problemas, mas no segundo, me deparei com um São-Bernardo de mais de um metro de altura, que me atacou furiosamente. A minha sorte, foi que ele era muito pesado para correr e eu pude me esquivar facilmente de suas investidas. Eliminei-o com certa dificuldade, pois ali havia alguns zumbis também. Não sei se por sorte ou se por mérito meu, consegui sair ileso de lá e continuei correndo.

Chegando a uma rua aberta, encontrei um carro, parcialmente em bom estado e com a chave jogada no banco do passageiro. Peguei-o e segui, já que a partir dali já não havia mais barricadas. Acelerei o mais que pude. Passando em frente à casa de dona Helga, vi que tudo estava tranqüilo, naquele bairro, viam-se muito poucos zumbis na área. Fiquei muito abalado com o fato de eu ter visto um garotinho de uns sete anos vagando sem alma por uma calçada. Lágrimas desceram pelo meu rosto.

Não demorei muito a achar o galpão; era um depósito de alguma coisa (não me lembro de que), e entrei sem ver um único zumbi por perto. Lá dentro, havia dez pessoas, das quais, só me lembro do nome de duas:

July, uma moça ruiva de olhos brilhantes e Paul, um senhor muito alto e encorpado que carregava uma espingarda enorme. Ao todo, quatro mulheres e seis homens, entre eles, um mercenário como o anterior. Durante o dia todo, tentamos traçar um plano de fuga, sem muito sucesso, pois não havia opções. Já á noite, o mercenário (que também não disse seu nome, o que me fez pensar que esses homens não o tinham) me revelou um pequeno frasco roxo, dizendo que era o G-Virus, e alegando que precisava que mais pessoas soubessem, me contou o que sabia sobre as experiências com animais, seres humanos e plantas, sobre os vírus T e G, e sobre alguns roubos internos ocorridos na Umbrella.

Três frascos do G-Virus, haviam sido roubados e levados à cidade, sendo que um deles era aquele que estava em seu poder. Para recuperar essas amostras, teriam sido levadas seis super-armas para o local: quatro da série T-00, e dois da série T-301 (não entendi nada no momento). Havia ainda outro: o Nemesis, a pior de todas, que estava lá para eliminar os membros remanescentes dos S.T.A.R.S. na cidade. Todas essas informações haviam sido roubadas por este mercenário.

Durante a madrugada, o mercenário, Paul e outro membro do grupo foram fazer uma busca, para encontrar alguma rota de fuga. Por esse tempo, reparei que um dos outros que tinham ficado não se separava de uma maleta preta. Fiquei um tanto curioso, mas não dei muita atenção. Os outros voltaram, trazendo um jipe militar, dizendo que haviam encontrado um caminho, pelas estradas do leste. Iríamos divididos no jipe e no carro trazido por mim, e a multidão que eles diziam se formar na barreira que bloqueava a estrada seria aberta com uma bomba de C4, que seria lançada improvisadamente no meio dos mortos. Percebi que Paul sempre levava a mão à costela, como se tivesse sido atingido por alguma coisa. Eles pareciam apreensivos, como se estivessem preocupados com algo. Muito preocupados.

Nem deu tempo de perguntar, pois nesse momento, a porta lateral caiu com um estrondo.

Dela surgiu um gigante de mais de dois metros de altura, totalmente careca, vestindo um sobretudo que lembrava um traje militar e usando um cinto cheio de coisas que não pude identificar, mas aparentemente não havia nenhuma arma. O mercenário gritou: "ELE NOS ENCONTROU!!! ATIRE!!!". Então começou a pior luta de todas; a criatura parecia ser de aço, pois era um dos tais T-00, como eu soube depois. O primeiro a cair, foi o almofadinha da maleta, após um único soco do monstro. Ele também quebrou o pescoço de uma mulher loira com aspecto intelectual que tentou fugir pela porta por onde ele entrara.

Eu e os outros poucos ali que estavam armados, tirávamos sem parar, mas ele parecia nem sentir as balas. Até que Paul se aproximou dele, que tentou atingir um soco na sua cabeça, mas o velho se abaixou e atirou a queima roupa com a espingarda no seu estômago, finalmente derrubando-o. Virando-se ele disse sorrindo: "Ele não ia me acertar de novo..." O que se seguiu foi muito rápido, não deu tempo de avisá-lo de que naquele exato momento o monstro se erguia novamente. Gritamos para ele tomar cuidado e ele se virou; porém só teve tempo de ver o monstro lhe agarrar pelo ombro com a mão esquerda e lhe levantar do chão, acertando o cotovelo direito em sua cabeça que ficou esmagada.

Ficamos furiosos. Eu corri na sua direção, parando a uns dois metros e alvejei seu rosto da melhor maneira que pude, deixando-lhe uma cratera na frente da cabeça. O mercenário lançou uma granada para baixo do corpo do T-00, que caíra novamente, destruindo parte do seu corpo. Um segundo após termos todos corrido do local. Mas eu não me esqueci de pegar a maleta preta, pois acreditava que poderia haver algo de valioso ali.

Saímos do depósito e corremos para os carros. Alguns zumbis haviam chegado ao local, mas nem nos preocupamos muito; matamos alguns que estavam no caminho, entramos nos veículos e seguimos, enquanto o mercenário armava a bomba.

Ao encontrarmos a enorme massa de zumbis, eu que estava ao volante acelerei o jipe e freei quase entrando em contato com a multidão. Com a força da freada somada à força do mercenário, a bomba já armada foi lançada, caindo perto da barreira de metal que bloqueava o caminho.

Os mortos começavam a encostar-se ao carro, quando acelerei novamente em marcha ré, indo para onde estava o outro carro, a um quilômetro de distância. A explosão foi tremenda, pois derrubou a barreira e todos os zumbis (alguns mais distantes apenas caíram com o impacto, se levantando logo depois).

Passamos por cima dos que estavam de pé e conseguimos fugir.

Chegamos à outra cidade algum tempo depois, acho que Corbin ou Corvin, não sei ao certo, onde cada um tomou o seu rumo, e nunca mais ouvi falar em nenhum deles.

Depois de voltar ao Brasil, continuei acompanhando pelo noticiário, o progresso da Umbrella, depois da destruição de Raccon devido a uma bomba nuclear lançada pelo governo, que explodiu bem no centro da cidade no dia seguinte à nossa fuga. Com o passar dos meses as ações da empresa perderam o valor, e por mais que negasse as acusações de bioterrorismo, a poderosa Umbrella foi dissolvida.

É verdade que eu perdi um ano inteiro nos estudos, sendo que já estava dois anos atrasado, mas esse "intercâmbio nada cultural" não foi totalmente uma perda. Na maleta que eu peguei do rapaz que morreu, havia mais de oitenta e sete mil dólares. O antigo dono deveria ter saqueado algum banco em meio ao caos da cidade. Uma pequena indenização pelo que passei.

Apesar de terem se passado alguns anos, muitas vezes ainda sonho com as coisas que vi e senti lá, e me sinto contente por ter conseguido chegar em casa inteiro e saudável. Nunca também deixei de acompanhar os noticiários, mas tenho esperanças de não ver neles aquilo com que um dia estive cara-a-cara.